quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Cortar as mãos para não escrever mais o teu nome


Cortar as mãos para não escrever mais o teu nome
Para não desejar abraçar-te nunca mais
Para não o poder fazer mesmo quando o desejo

Rasgar a carne e colocá-la ao desnível do coração
Não voltar a pensar na delicadeza da pele nos contornos do tecido

Arrancar os olhos como uma coisa supérflua
E deixar o sangue escorrer e acumular-se na palma dos pés
Fazer barulho de chuva por dentro das botas
Não mais ver. Viver à margem das alucinações.

Trocar o significado das palavras para que não voltes a perceber a minha língua
O dialecto que só falava contigo quando, anoitecidos, o desejo nos devorou.

Não voltar a comer e deixar o corpo ceder às mágoas
Morrer de desgosto como dizem os velhos
Assumir uma morte que aconteceu há muito
Quando os teus olhos se fecharam para os meus e esvaziaste as minhas incertezas.

Silenciar todas as vozes.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Eu consigo ficar aqui calada a olhar-te


eu consigo ficar aqui calada a olhar-te
tu calado a olhar um parede branca como se fosse um universo inteiro
eu a fingir que não me incomoda o teu silêncio
que está tudo bem e tenho o maior sorriso do mundo
tu continuas a olhar a parede, branca
eu a brincar com as mangas do casaco a olhar para o desenho dos teus lábios
depois eu a sonhar que te pego na mão, que a pouso no meu peito
eu a fingir que sentes o meu coração bater ainda, muito devagar
tu a fingir que não sabes que vou morrer.
nada acontece, continuas sentado a olhar a parede branca da sala
eu acendo um cigarro e continuo a puxar as mangas do casaco
gostava que os meus braços fossem suficientes para te abraçar
mas nada em mim foi suficiente para ti, não sabes que existo.

queria fazer-te acreditar no amor como uma possibilidade
e não como um acidente.
mas eu também não acredito no amor, só nos acidentes.
deixo cair cinza nas calças e tu não dizes nada
e a parede continua branca
diz-me como é ser amado
dá-me a mão e sente o meu coração bater devagar
enquanto me explicas o que é o amor
não dizes nada? Provavelmente não sabes também.
como eu, também tu deves ter ficado a olhar alguém que olha uma parede branca.
também tu deves ter feito considerações acerca do amor e das doenças
como se fossem coisas palpáveis como pedras
como se pudesses chutar o amor em todas as ruas da cidade.

eu consigo ficar aqui calada a olhar-te e entregar-te o meu corpo sem dizer nada
tu podes continuar a olhar para a parede branca
eu vou fingir que compreendo que olhes uma parede enquanto me invades o corpo.
e vou dizer que te amo, mesmo sem saber o que é isso, vou dizê-lo como um acidente
como se me tivesse enganado, como se na verdade quisesse apenas dizer-te que, pela cor do céu, é bastante provável que chova.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Amor, gritei amor em todas as ruas desta cidade.


Lembras-te do pensamento que compraste num café rasca à beira do jardim?
Foi qualquer coisa como “beija-me”, escrito a lápis.
Disse-te que os meus pensamentos não têm preço e que apenas os poderias comprar com o sabor dos teus lábios, e a tua saliva entardeceu na minha boca.

Éramos fortes ainda, como muralhas indesmentíveis na certeza de que nada melhor existia do que o dia seguinte, sempre o dia seguinte.
Fumávamos cigarros partilhados, fazias parte de todos os meus vícios e como ficavas bonito debaixo da chuva.
A tua pele tão branca e o teu olhar tão puro de adolescente na falta de nitidez do destino.

Amor, gritei amor em todas as ruas desta cidade. Depois de amor era sempre o teu nome, escrevi o teu nome em todos os meus livros. Deste-me todos os meus livros. Dei-te tudo o que era e foi tão pouco.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Eu não quero saber com quem sonhas.


Eu não quero saber com quem sonhas. Quem te faz suar sozinho no teu quarto. Em quem pensas quando te masturbas numa sala de azulejos brancos.
Quero saber dos teus dias atravessados a medo numa estrada de desassossego e morte. Com que mãos te agarras à superfície dos dias, em que te enroscas quando tens pânico da solidão  das ruas. E que sabor têm os teus lábios quando dizes o nome de todas as coisas. Qual é o cheiro da tua pele quando te fechas nos sentimentos de perda.
Não voltarei a querer as tuas obrigações e os teus sacrifícios na aproximação do destino, nada. Diz-me quando perdemos a pureza das palavras não pensadas, as cicatrizes do desejo no coração das horas.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

se fosse para dizer a verdade.

se fosse para dizer a verdade. diria. não vás, és tão bonito e os teus dedos tão perfeitos. as tuas mãos, um desejo sem nexo. o meu corpo todo na ausência de ti.
diria não vás. quero-te tanto que não sei quem sou. perdi todos os comboios por um sorriso teu. foste a melhor coisa da minha vida vazia.
diria quero escrever um livro sobre os teus olhos. porque há tanto a dizer sobre os teus olhos. mesmo quando eles dizem que não valho nada. e me fechas a porta na cara. e me desligas o telefone. e não me queres ouvir.  mesmo quando eles dizem não gosto de ti. que sou eu. os teus olhos, pérfidos e falsos. mesmo quando me tiram o sono e me roubam razões. mesmo quando me cortas o coração (que não tenho). mesmo assim, escrever um livro sobre os teus olhos e as quinhentas razões para não os amar.
as mil razões para não ser amor.

se fosse para dizer a verdade. tirar as máscaras. diria que tremo só de pensar-te. que perdi os meus cadernos. que não dormi toda a noite a pensar-te. que são maiores as minhas fragilidades que as minhas conquistas. que a pele, a pele, a pele. o teu cheiro que não me deixa abrir os olhos. mesmo quando a tua pele é de outros corpos. e te afogas num prazer que não é o meu. mesmo que cheire a cem pessoas diferentes. mesmo quando desprezas todas as minhas palavras. quando ignoras a minha ânsia de ti. mesmo assim, a tua pele. mesmo que finjas, na rua, não me conhecer. e atropeles todos os meus sentimentos. e atires todos os meus gestos contra as paredes da sala. me faças sangrar no meio da rua. mesmo quando não percebes que te digo que te amo porque não o digo realmente.

ainda que sigas todos os caminhos contrários. e as doenças se situem no espaço entre nós. que é o espaço de um universo inteiro. mesmo que tu e eu não sejamos mais do que o imediato erro. a dor acidental. uma nudez inquieta.

eu não sei dizer a verdade.