eu consigo ficar aqui calada a olhar-te
tu calado a olhar um parede branca como se fosse um universo
inteiro
eu a fingir que não me incomoda o teu silêncio
que está tudo bem e tenho o maior sorriso do mundo
tu continuas a olhar a parede, branca
eu a brincar com as mangas do casaco a olhar para o desenho
dos teus lábios
depois eu a sonhar que te pego na mão, que a pouso no meu
peito
eu a fingir que sentes o meu coração bater ainda, muito
devagar
tu a fingir que não sabes que vou morrer.
nada acontece, continuas sentado a olhar a parede branca da
sala
eu acendo um cigarro e continuo a puxar as mangas do casaco
gostava que os meus braços fossem suficientes para te
abraçar
mas nada em mim foi suficiente para ti, não sabes que
existo.
queria fazer-te acreditar no amor como uma possibilidade
e não como um acidente.
mas eu também não acredito no amor, só nos acidentes.
deixo cair cinza nas calças e tu não dizes nada
e a parede continua branca
diz-me como é ser amado
dá-me a mão e sente o meu coração bater devagar
enquanto me explicas o que é o amor
não dizes nada? Provavelmente não sabes também.
como eu, também tu deves ter ficado a olhar alguém que olha uma parede branca.
como eu, também tu deves ter ficado a olhar alguém que olha uma parede branca.
também tu deves ter feito considerações acerca do amor e das
doenças
como se fossem coisas palpáveis como pedras
como se pudesses chutar o amor em todas as ruas da cidade.
eu consigo ficar aqui calada a olhar-te e entregar-te o meu
corpo sem dizer nada
tu podes continuar a olhar para a parede branca
eu vou fingir que compreendo que olhes uma parede enquanto
me invades o corpo.
e vou dizer que te amo, mesmo sem saber o que é isso, vou
dizê-lo como um acidente
como se me tivesse enganado, como se na verdade quisesse
apenas dizer-te que, pela cor do céu, é bastante provável que chova.
"Tu disseste "quero saborear o infinito"
ResponderEliminarEu disse "a frescura das maçãs matinais revela-nos
segredos insondáveis"
Tu disseste "sentir a aragem que balança os
dependurados"
Eu disse "é o medo o que nos vem acariciar"
Tu disseste "eu também já tive medo. muito medo.
recusava-me a abrir a janela, a transpôr o limiar da
porta"
Eu disse "acabamos a gostar do medo, do arrepio que
nos suspende a fala"
Tu disseste "um dia fiquei sem nada. um mundo inteiro
por descobrir"
Eu disse "..."
Eu disse "o que é que isso interessa?"
Tu disseste "...nada"
Tu disseste "agora procuro o desígnio da vida. às
vezes penso encontrá-lo num bater de asas, num
murmúrio trazido pelo vento, no piscar de um néon.
escrevo páginas e páginas a tentar formalizá-lo.
depois queimo tudo e prossigo a minha busca"
Eu disse "eu não faço nada. fico horas a olhar para
uma mancha na parede"
Tu disseste "e nunca sentiste a mancha a alastrar, as
suas formas num palpitar quase imperceptível?"
Eu disse "não. a mancha continua no mesmo sítio, eu
continuo a olhar para ela e não se passa nada"
Tu disseste "e no entanto a mancha alastra e toma
conta de ti. liberta-te do corpo. tu é que não vês"
Eu disse "o que é que isso interessa?"
Tu disseste "...nada"
Eu disse "o que é que isso interessa?"
Tu disseste "...nada""
Mão Morta. Bom texto.
Uma das que toca quase diariamente no rádio do meu carro. Adoro.
ResponderEliminarTu disseste: nada.
(engraçado que também pensei nela quando acabei de escrever este texto).
Não há pai para o Adolfo!!!!!
ResponderEliminarVou ter que concordar contigo. :)
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